Um minuto para Deus?’: religiosos deixam visitas presenciais e migram para ligações

    Foto:Reprodução

    Visitas tradicionais das testemunha de Jeová, aos domingos, têm ocorrido virtualmente

    Aos domingos, dia de folga, é preciso escolher o melhor horário. “De repente, ligo muito cedo, podem se zangar”, diz Renato Jorge Pinto, 64 anos. Ele, testemunha de Jeová, faz parte do grupo de religiosos que trocou as visitas presenciais por ligações. Antes de iniciar a peregrinação virtual, entre 9h e 9h30, Renato veste terno – como antes -, põe uma bíblia próxima e disca números aleatórios. Se atendem, começa o testemunho. Se não, arrisca até conseguir.

    As ligações, tanto quanto possível, tentam manter a frequência e o simbolismo das evangelizações presenciais. Elas passaram a ser a opção em um tempo de portas fechadas para estranhos, durante a pandemia. Os voluntários, de diferentes religiões, reunidos em duplas ou grupos maiores, também precisaram pensar em medidas mais seguras para eles próprios. Os domingos eram conhecidos como os mais tradicionais para visitas de evangelização.

    Antes da pandemia, o administrador Renato despertava cedo, vestia o terno e, com outros membro da Testemunhas de Jeová, partia para visitas de porta em porta. Pregava tanto na região de Cajazeiras, onde mora, como em bairros mais distantes. Os homens, vestidos com roupa social, as mulheres, com saias e blusas meio compridas, estivesse o calor que fosse. De certa forma, Renato diz que já esperava a transição – por motivos religiosos.

    “Cumprimos a obrigação de pregar para todos, de casa em casa, por obediência a Jesus Cristo, que ordenava que as peregrinações acontecessem no tempo do fim. Nós estamos no tempo do fim, a pandemia já era esperada por nós, então mantivemos nossa peregrinação”, opina ele, que fazia testemunhos presenciais há mais de 40 anos.

    Os contatos são escolhidos aleatoriamente, na maior parte do tempo. Quando o interlocutor é receptivo, o número é salvo e as ligações voltam a ocorrer. Não só no domingo, como em outros dias da semana. Há também casos de pessoas visitadas antes da pandemia que deram o número aos religiosos para receber chamadas em que são enunciadas passagens bíblicas. “É aleatório, como antes, que batíamos de porta em porta. Se vivemos na época da eletrônica, usamos o eletrônico para pregar”, justifica. A ligação é somente por voz, mas, a depender do caso, também migram para o vídeo. Depende da vontade de cada um.

    Como não há uma regulamentação entre os voluntários de cada religião, especificamente, cada um faz sua regra e rotina de trabalho religioso. Nem sempre esperam até às 9h, como faz Renato, por exemplo.

    “Recebi a primeira ligação, às 8h, estava de bom humor, ouvi, ele disse que era uma mensagem de Jesus”, lembra o publicitário Karlo Andrade, 46, sobre a primeira chamada, recebida há 15 dias.

    Depois, veio a segunda, a terceira, a quarta, em horários variados, como em reuniões de trabalho. Então, ele pediu ao senhor que o ligava que deletasse seu contato.Criado no interior, cidade de Ubaíra, e morador de Salvador há mais de 20 anos, Karlo estava acostumado com a outra modalidade de visitas – os fiéis à porta. “Mas não é legal quando se torna algo insistente”, completa.

    Santo online

    Sempre à noite, quase sempre às 19h30, os cinco voluntários católicos da Paróquia São João Evangelista, iam para casas de famílias que, previamente, tinham pedido para recebe-los. Ao chegar, faziam uma oração inicial, invocavam o Espírito Santo e deixavam a imagem da Sagrada Família. Na semana seguinte, voltavam para buscar. “Agora, a imagem está ficando guardada e tudo é feito online”, conta Izabelle Rodrigues, 35, pedagoga que desde 2016 integrava o grupo de voluntários.

    Uma das ações online da “Visita Sagrada” (Foto: Acervo Pessoal/Izabele Rodrigues)
    As ligações são feitas por vídeo, via aplicativo de mensagens, e a visita dura, em média, meia-hora. Antigamente, ficavam até uma hora e meia nas casas, a entoar orações. A internet do celular suporta o consumo de dados da ligação e Izabelle não precisou fazer nenhuma mudança para se adaptar à nova rotina. “É diferente, mas a gente já se adaptou, diz Izabelle. As ações online têm sido feitas por todo movimento chamado “Visita Sagrada”, da Renovação Carismática, corrente da Igreja Católica.

    As visitas presenciais fazem parte da identidade cristã de evangelização. São tão antigas quanto o próprio cristianismo, explica o teólogo e padre Manuel Filho. No próprio evangelho, ele diz, há passagens específicas em que o cristão é incentivado a “ir a todos os povos”, “evangelizar todas as criaturas”. As visitas não são tão só proselitistas.

    “Sempre teve essa ideia de ir ao encontro do outro, estar próximo, em hospitais, por exemplo. Não é uma grande novidade. A novidade é o formato que tem sido adotado. É uma coisa de dois mil anos que, a cada tempo, tem suas modificações”, justifica.

    Durante quase todo o dia, a engenheira química, Priscila Cunha dos Anjos, 27, envia mensagens de conforto e oração para cada um dos quatro “anjos” que acompanha. A Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem criou, em junho, a campanha chamada “Correio dos Anjos”. A ideia não era manter qualquer tipo de visita presencial feita anteriormente, mas inventar uma nova forma de manter próximos os fiéis das quatro igrejas que formam a paróquia.

    “A ação surgiu da sensibilidade do padre Davi Oliveira dos Santos. O templo estava fechado e, por se tratar de uma paróquia idosa, precisávamos nos manter pelo menos espiritualmente em cada um desse irmãos”, explica a voluntária.

    As mensagens são enviadas somente para os fiéis da paróquia e os voluntários foram divididos em oito grupos, cada um com subgrupos de até cinco pessoas. De manhã, de tarde e de noite, “os anjos” – fiéis – são acompanhados. “É importante mostrar presença, conforto, estarmos pertos, num momento difícil como essa”, pontua Priscila. Mesmo com as atividades em templos religiosos com autorização de retomada, o projeto continua. E assim deve permanecer. “Essa é uma maneira de criar e fortalecer laços”, acredita, depois dos meses de experiência.

    Fonte: Correio da bahia