Seguem presos acusados de matar João Alberto, crime que reabre ferida do racismo

Morte do soldador, agredido por dois seguranças numa loja do Carrefour, em Porto Alegre, comove o Brasil. Criminosos serão indiciados por homicídio, e polícia apura motivação racial. Hipermercado diz que rompeu contrato com a empresa terceirizada.

O Dia da Consciência Negra foi marcado pela dor da luta diária, pelas insistentes perdas. Ontem, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, representou a triste realidade da população preta no Brasil. O assassinato dele, por dois homens brancos, numa unidade do Carrefour, em Porto Alegre, causou comoção e revolta no país. Beto, como era conhecido, foi brutalmente espancado, na quinta-feira à noite. Um dos agressores o imobilizou apertando o joelho contra as costas dele. O laudo médico aponta morte por asfixia. Os dois estão presos

Os suspeitos do assassinato são Magno Braz Borges, 30, e o policial militar temporário Giovani Gaspar da Silva, 24, que faziam a segurança do estabelecimento. “Agredido bruscamente por facínoras. Chamar aquilo de segurança é desmerecer os verdadeiros seguranças”, lamentou o pai da vítima, João Batista Rodrigues Freitas, 65. “As únicas coisas que podemos esperar é por Deus e pela Justiça. Não há mais o que fazer. Meu filho não vai mais voltar”, afirmou ele, classificando o crime como tendo motivação racista.

As investigações preliminares apontam que João Alberto se desentendeu com uma funcionária, e a segurança foi chamada. O soldador foi levado para a entrada da loja e teria dado um soco no PM. Passou, então, a ser espancado.

Ao sogro, a esposa de Beto, Milena Borges Alves, 43, relatou o episódio. “Ela me contou que o segurança apertou o meu filho contra o chão, e ele já estava roxo. Fazia sinal com a mão para ela fazer alguma coisa, tirar o cara de cima, mas um outro segurança empurrou a Milena”, contou João Batista. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Milena reiterou a versão.

Nas imagens, é possível ver pessoas gritando para que as agressões ao soldador cessem. “Vamos chamar a Brigada (Militar)”, disse alguém, ao fundo. Em uma das gravações, o homem é derrubado e atingido por, ao menos, 12 socos. “Tentamos intervir, mas não conseguimos. A gente gritava ‘tão matando o cara’, mas continuaram até ele parar de respirar. Fizeram a imobilização com o joelho no pescoço do Beto, tipo como foi com o americano (George Floyd, morto por policiais, neste ano, nos Estados Unidos)”, relatou um vizinho da vítima, Paulão Paquetá, que estava no local.

João Alberto deixa quatro filhos e uma enteada. Segundo a polícia, ele tinha antecedentes criminais por violência doméstica, ameaça e porte ilegal de arma.

Investigação

Responsável pela apuração do homicídio, a delegada Roberta Bertoldo declarou que o caso não é, inicialmente, tratado como racismo. “Até o presente momento, não se vislumbra que a cor de pele desse indivíduo tenha sido, de alguma forma, a causa ou tenha atuado decisivamente para que se desenvolvesse essa ação”, disse.

Os homens foram detidos em flagrante, e a polícia ainda vai apurar a responsabilidade de outros servidores do próprio supermercado “que estavam no local, presenciaram a cena e deixaram que aquela situação se desenvolvesse”, afirmou Bertoldo. O caso está sendo tratado como homicídio triplamente qualificado.

Em nota, a Brigada Militar afirmou que prendeu os envolvidos, “inclusive o PM temporário, cuja conduta fora do horário de trabalho será avaliada com todos os rigores da lei”. Já o Grupo Vector, empresa de segurança responsável pelos funcionários envolvidos, lamentou o ocorrido e disse não tolerar “nenhum tipo de violência, especialmente as decorrentes de intolerância e discriminação”. Ressaltou que os colaboradores recebem treinamento e que iniciou o procedimento de apuração interna.

O Carrefour manifestou-se por nota. Considerou o episódio “inexplicável”, classificou a morte como “brutal” e disse que “adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos”. Segundo o comunicado, o contrato com a empresa responsável pelos seguranças foi interrompido, e o funcionário que estava no comando da loja durante o crime, desligado. O Carrefour afirmou, ainda, que doará o lucro de todas as lojas do Brasil, obtido ontem, a entidades que combatem o racismo.

O posicionamento, no entanto, foi insuficiente para conter a onda de críticas e protestos contra a rede de supermercados. Entre os assuntos mais comentados nas redes sociais estava a organização de um boicote contra o grupo. “Não compre. Não frequente. Justiça a João Alberto”, dizia a postagem que circulou amplamente ontem.

A revolta não ficou restrita ao caso. Isso porque não é a primeira vez que o nome da empresa é associado a episódios de agressões e atos considerados desumanos. Diferentemente da interrupção das atividades em solidariedade à morte de João Alberto, o mesmo não ocorreu quando um representante de vendas morreu numa loja Carrefour, no Recife.

Manoel Moisés Cavalcante, 53, teve um infarto no local. O corpo foi escondido por guarda-sóis, tapumes, papelão e engradados de cerveja. O estabelecimento continuou funcionando normalmente, com circulação de clientes. Em dezembro de 2018, uma cadela de rua foi morta a pauladas por funcionário do Carrefour de Osasco. Fotos do animal sangrando viralizaram nas redes e geraram revolta nos internautas e de organizações protetoras de animais.

Aspas

No Dia da Consciência Negra, o assassinato brutal de João Alberto Freitas, espancado até a morte por seguranças de um supermercado, em Porto Alegre, estarrece e escancara a necessidade de lutar contra o terrível racismo estrutural que corrói nossa sociedade” Davi Alcolumbre, presidente do Senado

“Em nome da Câmara dos Deputados, envio meus sentimentos à família e aos amigos do João Alberto Silveira Freitas. A cultura do ódio e do racismo deve ser combatida na origem, e todo peso da lei deve ser usado para punir quem promove o ódio e o racismo” Rodrigo Maia, presidente da Câmara

“Aos familiares e amigos da vítima, o João Freitas, toda nossa solidariedade e a certeza de que a investigação será rigorosa para que haja consequência deste ato lamentável” Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul.

As imagens são chocantes e nos causaram indignação e revolta. Chega de violência, chega de tanta barbárie. Temos muito trabalho pela frente para mudar essa realidade no país” Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.

No Distrito Federal, cerca de 100 pessoas se concentraram em frente à Praça Zumbi dos Palmares, no Conic, ontem à noite, em manifestação contra o assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas, numa loja do Carrefour, em Porto Alegre. Com gritos de ordem, como “Marielle perguntou, eu também vou perguntar: quantos mais têm que morrer para essa guerra acabar?” e “vidas negras importam”, o grupo seguiu em direção ao Carrefour Bairro, na 402 Sul.

O protesto pacífico durou pouco mais de uma hora. Com a chegada dos manifestantes, o Carrefour Bairro fechou as portas, e funcionários do estabelecimento foram liberados. Policiais militares formaram uma barreira de proteção para evitar que o público invadisse o supermercado.

Margareth Santos, 47 anos, é integrante da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno e esteve presente no ato. Ela relatou que ficou em choque quando soube do crime em Porto Alegre. “As vidas negras importam e, depois dessa situação, o racismo está desmascarado. Estão nos matando, humilhando e deixando nosso povo doente. O que deixa doentio é o incômodo com nossa cor de pele. Nós incomodamos”, afirmou.

O estudante de ciências políticas Daniel da Silva, 21, acredita que manifestações reforçam a luta contra a violência ao negro. “O racismo é institucionalizado e, a cada 23 minutos, um negro morre. Estamos em um país inseguro. Nossas crianças que virão vão sofrer com toda essa desigualdade. Este momento é muito importante para reforçar nossa luta coletiva”, pregou.

Em outras cidades pelo país também houve protestos. Milhares manifestaram-se em frente ao mesmo supermercado onde ocorreu o assassinato, em Porto Alegre. Cruzes e flores foram colocadas em homenagem a João Alberto. Lideranças negras e políticas se revezavam no caminhão de som.

Entre 20 e 30 pessoas conseguiram entrar no estacionamento do hipermercado e alguns foram até a parte térrea da unidade. Foi possível verificar quebra-quebra no local e cancelas do estacionamento vandalizadas. O vidro da escada rolante foi destruído.

Uma minoria começou a atirar pedra e fogos de artifício. O Batalhão de Choque respondeu com bomba de gás. Depois disso, alguns outros portões que dão acesso ao hipermercado foram quebrados. Papéis, cartazes, faixas e até plantas secas foram incendiadas. A unidade teve a palavra “assassinos” pichada na fachada. Rojões também foram arremessados contra o mercado.

Em São Paulo, manifestantes concentraram-se no vão do Masp, na região central. Depois, um grupo seguiu em direção a uma unidade do Carrefour, na Rua Pamplona. Uma pequena parte deles pegou pedras dos vasos do estacionamento e arremessou contra os vidros do supermercado. A ação durou pouco mais de 10 minutos, e clientes ficaram assustados. Lideranças da manifestação chegaram a pedir que não houvesse quebra-quebra ou invasão, mas os pedidos não foram atendidos por esse pequeno grupo.

No Rio, dezenas de manifestantes fizeram um protesto no supermercado Carrefour da Barra da Tijuca, na Zona Oeste. Aos gritos de “Assassino, Carrefour”, eles chegaram a entrar no supermercado, pedindo para que a unidade fechasse.

Em Belo Horizonte, o ato foi organizado por entidades que representam a população negra, como o Núcleo Rosa Egipsíaca Negros, Negras e Indígenas. Em Fortaleza, há relatos de uso de spray de pimenta pelos policiais, e três manifestantes foram detidos. (Com Agência Estado)

Ministros do STF repudiam
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) foram às redes sociais declarar indignação com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas. Para Alexandre de Moraes, “o bárbaro homicídio praticado no Carrefour escancara a obrigação de sermos implacáveis no combate ao racismo estrutural”. Na mesma linha, Gilmar Mendes publicou: “O episódio só demonstra que a luta contra o racismo e contra a barbárie está longe de acabar”. O presidente do STF, Luiz Fux, afirmou que “toda violência é desmedida e deve ser banida da sociedade”. “É triste episódio.”

Fonte: Correio Brasiliense